Rodrigo Oliveira
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Priming epigenético cognitivo e transtorno de estresse pós-traumático.
Sabemos que o ambiente externo, incluindo variantes físicas, biológicas e sociais, é um dos principais fatores atuantes sobre nosso comportamento. A partir das interações e feedbacks recebidos do ambiente, podemos processar a nível cerebral e gerar uma resposta consciente ou inconsciente relacionada àquele estímulo. Porém, além disso, esse estímulo externo advindo do ambiente pode influenciar na atividade de nossos genes, o que pode refletir em diversas mudanças em nosso corpo, o que é o objeto de estudo da epigenética. A epigenética é uma área emergente da biologia que demonstra as mudanças fenotípicas decorrentes de alterações nas expressões de genes sem exercer modificação nas sequências do material genético (DNA) e que são herdadas pelas próximas gerações. A epigenética tem se destacado cada vez mais no cenário científico atual, tendo impacto em várias áreas como bioética, política, teoria jurídica, epidemiologia, filosofia da identidade, medicina, medicina holística, mídia e na indústria. Assim, a neuroepigenética é o estudo de como as alterações epigenéticas estão relacionadas ao sistema nervoso, interferindo em seu funcionamento a nível fisiológico e comportamental. Nesse contexto, podemos utilizar a epigenética para tentar modular o sistema nervoso a nosso favor, tanto para potencializar funções cognitivas, quanto no intuito de regular alguns tipos de distúrbios comportamentais, como é o caso do transtorno de estresse pós-traumático, por exemplo. Aqui vamos buscar entender melhor os mecanismos epigenéticos e como é possível aplicar isso em prol da nossa cognição.
Existem várias formas de se modificar a expressão dos genes sem modificar o sequenciamento de do DNA, como a metilação, RNAs não codificantes e modificações nas histonas (Imagem abaixo). A metilação é um processo epigenético pelo qual ocorre a adição de grupo metil em áreas específicas do DNA (geralmente na base nitrogenada citosina) na qual atenuam a expressão gênica pela inibição da transcrição naquela área. Já em relação aos RNAs não codificantes, eles induzem alterações nos processos transcricionais e pós- transcricionais através das RNAs interferentes (siRNA), além de participar da formação da heterocromatina e estabilidade genômica.Outro tipo de modificação da expressão genética sem alterar a sequência do DNA são às modificações das histonas, onde esse fenômeno acontece quando as histonas, que são proteínas com carga positiva que se associam ao DNA, mudam seu grau de acetilação, podendo compactar mais ou menos o material genético, o que pode alterar sua expressão. O aumento da acetilação de histonas, por exemplo, deixa as fitas de DNA que estão "enroladas" nessas proteínas mais livres, fazendo com que que fatores de transcrição possam acessar o DNA da região favorecendo a expressão daquele gene específico. O contrário acontece com a diminuição da acetilação, dificultando a expressão genética. Esse mecanismo de modificação das histonas é o mais bem descrito em relação a sua influência na cognição. Dessa forma, aqui, vamos focar nesse tipo de mecanismo epigenético.
Distúrbios definidos por habilidades cognitivas reduzidas, como a doença de Alzheimer (DA) e o declínio cognitivo relacionado à idade, estão associados à redução da acetilação de histonas no hipocampo em modelos pré-clínicos e em amostras de cérebro humano post-mortem. Por outro lado, no cérebro, a acetilação de histonas do hipocampo mostrou se correlacionar positivamente na formação de memória. Sabe-se que a formação da memória depende tanto da comunicação sinapse-sinapse quanto da sinalização sinapse-núcleo.A consolidação de uma memória de curto prazo para uma memória de longo prazo depende da integração de mensagens sinápticas via cascatas de sinalização para induzir a transcrição no núcleo e consequentemente induzir modificação estrutural do neurônio pós sináptico, como formação de novas sinapses (sinaptogênese) (Imagem abaixo). Para ocorrer esse processo de transcrição no núcleo, a conformação da cromatina deve estar em um estado 'aberto', o que pode ser controlado por estímulos e mecanismos epigenéticos tempo-específicos como a acetilação de histonas.
. Trabalhos anteriores mostraram a relação entre a acetilação de histonas e a melhora de memória de reconhecimento de novos objetos e da memória espacial, além de também está relacionada com a memória de condicionamento contextual do medo. A memória condicionada ao medo em estados graves pode gerar alguns distúrbios cognitivos como o transtorno do estresse pós traumático (TEPT). O TEPT têm início após um evento extremamente traumático, como por exemplo agressão física ou sexual, assalto, sequestro, acidentes entre outros, e consiste em uma série de reações disfuncionais intensas e desagradáveis sempre que o trauma é lembrado, ou seja, o indivíduo revive o episódio como se estivesse ocorrendo naquele momento, o que pode desencadear as mesmas sensações de dor e sofrimento que o agente estressor provocou no passado. Os sintomas envolvidos podem ser sudorese, náusea e tremores, prejuízos sociais, freezing (estado de choque), depressão, ou até mesmo desenvolvimento de outros transtornos como o transtorno dissociativo de identidade. Sendo assim, esse transtorno pode impactar negativamente os processos biofisiológicos, particularmente aqueles relacionados ao cérebro, podendo ter repercussões em descendentes sendo herdado por gerações.Trabalhos mostram, por exemplo, que os TEPT em crianças podem afetar o funcionamento do metabolismo relacionados a redução do peso corporal e alterações na glicemia, onde no decorrer do tempo leva a mudanças fenotípicas que são transmitidas aos descendentes através de mecanismos ainda poucos conhecidos.
Nesse contexto, sabe-se que a utilização de moduladores de acetilação de histonas podem ter efeitos pró-cognitivos em relação à memória. A acetilação de histonas é mantida por enzimas de 'transcrição', conhecidas como histonas acetiltransferases (HATs), além de enzimas de 'exclusão', chamadas de histonas desacetilases (HDACs) e enzimas de 'tradução' que contêm bromodomínios que reconhecem e localizam resíduos de lisina acetilada. As proporções de atividade de 'transcrição' e 'exclusão' podem ser artificialmente manipuladas pelo tratamento utilizando inibidores de HDAC (HDACis), levando a alterações na acetilação de histonas (Imagem ao lado). Essas alterações de acetilação de histonas não apenas abrem a cromatina para ser mais acessível, mas também realizam o direcionamento dos transcritores HATs, aumentando assim a transcrição gênica de forma mais organizada. Nesse sentido, surge o conceito de priming epigenético cognitivo, que tem como principal objetivo potencializar a memória e a cognição a partir da associação de estímulos externos com a manipulação epigenética.
O efeito priming se caracteriza por uma influência que a exposição prévia a um determinado estímulo pode acarretar na resposta a um estímulo subsequente, sem que exista consciência do indivíduo sobre tal influência, ou seja, uma pré-ativação inconsciente a um determinado estímulo. Aplicando esse conceito ao priming epigenético cognitivo, esse se caracteriza pela a associação de um estímulo prévio externo (como estímulos que induzem o aprendizado, por exemplo) como algum tipo de intervenção epigenética artificial (como a utilização de inibidores de HDAC) com o intuito de melhoras cognitivas.
Estudos e ensaios pré-clínicos realizados com inibidores de HDAC mostraram melhora de distúrbios de memória em indivíduos com distúrbios neurodegenerativos como esquizofrenia e Doença de Alzheimer. Além disso, a utilização desse mesmo inibidor associado a terapia de extinção de memória traumática em indivíduos com TEPT relacionado a aracnofobia mostrou melhora significativa de sintomas associados a o transtorno, como ansiedade e depressão. Esse tipo de abordagem caracteriza um priming epigenético cognitivo, visto que a terapia de extinção de memórias aversivas se baseia na exposição do indivíduo com TEPT a estímulos específicos que desencadeiam medo excessivo em ambiente controlado para o mesmo aprender a lidar com aquele trauma, atribuindo outra perspectiva emocional a esse estímulo de forma inconsciente. Essa terapia tem como base fisiológica o princípio da reconsolidação da memória. Utilizando essa ferramenta previamente a utilização do inibidor de HDAC, por exemplo, possivelmente menor será a acetilação das histonas, logo a cromatina se encontrará mais aberta possibilitando uma maior síntese proteica e consequentemente uma maior consolidação da memória de extinção (memória aversiva ressignificada). Outras ferramentas terapêuticas também têm sido associados com a terapia de extinção,como a realidade Realidade Virtual (VR) (Imagem abaixo), que mostrou um ótimo resultado no tratamento de fobias e TEPT e a Transcranial Magnetic Stimulation (TMS), que quando aplicadas de forma inibitória no córtex pré-frontal mostrou melhora de sintomas de depressão apresentando mudanças na rede de controle cognitivo emocional, além de melhorar a memória de longo prazo em adultos mais velhos. Além disso, indivíduos que tiveram a inibição da região do córtex pré-frontal através do TMS, importante área envolvida no processo de consolidação da memória de longo prazo, desenvolveram uma resposta psicofisiológica menor aos estímulos aversivos. Apesar desses achados, estudos utilizando priming epigenético cognitivo como uma forma terapêutica para TEPT são escassos, trazendo quase nenhum conhecimento relacionado às alterações cerebrais (como a atividade elétrica e hemodinâmica, por exemplo) e fisiológicas por trás desse mecanismo, sendo necessário a realização de novos trabalhos que busquem esses aspectos.
Desenho experimental
Aqui vamos propor um desenho experimental envolvendo priming epigenético cognitivo associando a terapia de extinção de memórias aversivas com uso de algum modulador epigenético, como o próprio inibidor de HDAC com intuito de potencializar o tratamento do TEPT. Os estímulos visuais aversivos podem ser ofertados através de uma realidade virtual. Para isso, será avaliado as emoções antes, durante e depois da intervenção, visto a importância do emocional no processo de evocação de memórias traumáticas. A emoção pode ser um importante medidor de sucesso da terapia, já que a extinção de emoções como medo e ansiedade está intimamente relacionada com a extinção da memória traumática. As emoções poderão ser avaliadas através da eletroencefalografia (EEG) (Imagem ao lado) visto que é possível cada emoção possuir uma assinatura eletroencefalográfica específica, variando o tempo, frequência e domínios de tempo-frequência mistos dependendo da emoção evocada no momento. Além disso, o EEG poderá ser utilizado associado com a espectroscopia de infravermelho próximo NIRS (imagem ao lado) para uma avaliação hemodinâmica cerebral e consequentemente termos resultados mais acurados. Trabalhos realizados com EEG mostraram que indivíduos com TEPT apresentam alteração da atividade eletrofisiológica cerebral quando apresentados ao estímulo traumático, onde foi encontrado diminuição do power global nas bandas de delta, teta e beta de banda baixa, além do aumento do comprimento de onda aumentado em teta e beta de banda baixa, sendo as alterações em teta relacionadas a re-experiência e as alterações em beta de banda baixa relacionadas com com ansiedade e intensidade da dor. Já trabalhos realizados com NIRS e indivíduos com TEPT mostraram diminuição de ativações hemodinâmicas nas região do córtex pré-frontal lateral esquerdo durante uma tarefa cognitiva de Stroop (palavra-cor), podendo demonstrar que esse tipo de trauma também pode afetar a memória de trabalho e processamento cognitivo. Os indivíduos poderão ser alocados em outros 6 grupos distintos: grupo 1 (Sem nenhum tipo de intervenção), grupo 2 (apenas exposição a estímulos não aversivos), grupo 3 (apenas terapia de extinção com estímulos aversivos) grupo 4 (apenas administração de inibidores de HDAC), grupo 5 (exposição a estímulos não aversivos + administração de inibidores de HDAC), grupo 6 ( terapia de extinção com estímulos aversivos + administração de inibidores de HDAC). Inicialmente todos os grupos realizaram uma avaliação emocional/cognitiva e de EEG/NIRS. Após a avaliação, dependendo do grupo, os a intervenção terapia de extinção+administração do inibidor será realizada será realizada concomitantemente com um registro de EEG/NIRS.durante a terapia de extinção os indivíduos serão expostos a algum tipo de estímulos visuais e auditivos aversivos que possam desencadear algum tipo de resposta de medo quando for exposto novamente (como aracnofobia, por exemplo). Para seguir o raciocínio científico relacionado com o priming epigenético cognitivo, a administração do inibidor de HDAC tem que ser realizada logo após a exposição do estímulo. Após todas as sessões de intervenção, uma avaliação final similar a inicial será realizada (Imagem abaixo).
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